Em 2025, as terras raras dominaram os debates sobre recursos naturais no Brasil. Como socióloga atuando no campo da energia, sinto-me imersa na própria crise social que analiso.

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Em 2025, as terras raras dominaram os debates sobre recursos naturais no Brasil. Como socióloga atuando no campo da energia, sinto-me imersa na própria crise social que analiso. Ao fechar este ano, é nisso que tenho insistido: na dificuldade de pensar o social quando o campo energético é atravessado pelo tecnicismo, nesse ambiente, as ciências sociais costumam ser chamadas apenas na figura do que é designado como “perito social”: ou seja, alguém que fornece respostas pontuais, sem espaço para reflexão, o que pode ser um pouco frustrante para quem vem de uma tradição teórica de pensamento social.
Essa experiência concreta evidencia o paradoxo da sociologia contemporânea descrito por Vandenberghe em um artigo recente sobre como fazer análise de conjuntura: historicamente desenvolvida para compreender crises sociais, ela própria enfrenta limites epistemológicos e estruturais que dificultam a análise da sociedade em sua totalidade. Segundo Vandenbergue os objetos tradicionais da sociologia, Estado-nação, classe social, trabalho, família, sexo, raça, estão em transformação ou em desintegração e os excessos da desconstrução abriram caminho não apenas para uma série de “viradas” (da linguística à afetiva), mas também para modismos como a pós-crítica e a pós-teoria. A sociologia parece ter abdicado da tarefa de analisar a sociedade como totalidade, deixando-a à Teoria Crítica e aos chamados Studies.
Para mim, esse diagnóstico também denota numa espécie de vazio analítico, principalmente em temas concretos que articulam materialidade, território e totalidade social, e que ganharam relevância em 2025, como é o caso das terras raras. Em 2023, escrevi que aquele fora o ano do lítio, porque, apesar da queda nos preços devido ao aumento da produção em rocha e salmoura, a corrida pelo lítio continuou alta. Em 2025, arrisco dizer que foi o ano das terras raras. Se 2023 reordenou a geopolítica das baterias e dos microchips, 2025 expôs, no Brasil, a ausência de uma estratégia articulada, interdisciplinar e duradoura para essa cadeia extensa e complexa. Apesar de depósitos relevantes, o Brasil ainda carece de capacidade de extração, processamento, refino, o que reforça sua posição periférica na cadeia global, seguimos presos ao velho tripé: exportar, exportar e exportar.
Para não esquecermos: terras raras são 17 elementos químicos, escândio, ítrio e os 15 lantanídeos, essenciais para celulares, carros elétricos, turbinas eólicas, catalisadores e ímãs industriais. Segundo a Agência Internacional de Energia, no cenário STEPS (Stated Policies Scenario), aquele que projeta o futuro com base nas políticas já anunciadas, a demanda por esses elementos deve dobrar até 2040. Mesmo com o crescimento da reciclagem, menos de um terço da necessidade será atendido, tornando a mineração primária indispensável. Geopoliticamente, três países concentram mais de 90% do refino (China, Estados Unidos e Malásia), evidenciando a vulnerabilidade e a competição global por esses recursos, o que significa que continuaremos a falar nesta matéria-prima nos próximos anos.
No Brasil, o tema ganhou as conversas cotidianas impulsionado por declarações de Donald Trump sobre controle das terras raras e disputas com a China, todos falavam das terras raras, ora para compreender o assunto, ora para afirmar que os Estados Unidos buscavam controlá-las a qualquer custo. A soberania virou palavra-chave e muitas vezes ouvi, na mesma frase, defesa da soberania e abertura de mercados, como se os termos não estivessem em tensão. Em alguns casos soberania passou a funcionar menos como um conceito e mais como jargão mobilizador.
Como pesquisadora, poderia me sentir satisfeita: pesquisa existe para circular, abrir debates e formar posições. Mas, após um ano particularmente árduo, percebi que pesquisar um tema árido e complexo revela a importância de ter ao lado pessoas e teorias que nos ajudam a refletir. Isso porque, muitas vezes, os estudos formais na sociologia, ao buscar objetividade – não como neutralidade, mas como meio de compreender o que realmente se passa -, não conseguem abarcar fenômenos que combinam transformações geopolíticas e mudanças territoriais locais, como diria o nosso Milton Santos, o global e o local, num misto de ideologia e conhecimento. Escrevi, anos atrás, na minha dissertação de mestrado, que somos moldados por quem nos rodeia e continuo acreditando nisso.
Para tentar me reencontrar em meio a tanta informação, voltei a um texto do meu amigo e professor Sinclair, in memoriam, sobre ser diferente usando calças jeans e tênis (já o citei aqui outras vezes; perdoem-me). Ele dizia que, no campo das opiniões e dos conceitos, e também dos preconceitos, todos procuram ser diferentes para se afirmarem como conhecedores de determinados assuntos. No entanto, dizia ele, o mainstream midiático continua a ter a mesma origem. Os jornais são os mesmos de manhã e à noite, tornando a mídia uma média. E é isso que molda o conhecimento que repetimos apressadamente. Portanto, às vezes, é preciso uma posição pouco enquadrada para iluminar obviedades que passam despercebidas em um tempo social com mil velocidades.
Este meu último texto de 2025 funciona como um lembrete, para mim e para outros, em tempos difíceis, restam-nos alguns valores e relações: boas conversas, trocas de impressões e a boa e velha leitura. Mas também evidencia algo mais amplo já abordado pelo Sinclair: a sociedade, pressionada pela necessidade de ser diferente, estar na moda e ser prática nas opiniões, acaba incorporando certas expressões como axiomas, como a infalibilidade quase dogmática dos ditames do “pensamento único”.
O debate sobre terras raras é um exemplo disso: entre slogans de soberania e promessas de abertura de mercados e de uma industrialização que nunca chega, pouco espaço sobra para discutir as implicações sociais, territoriais e geopolíticas dessa cadeia. Falar, escrever ou discutir fora desse enquadramento técnico assemelha-se, metaforicamente, a um retorno aos tempos medievais, nos quais a passagem lenta pela fogueira era o destino de todo herege. E é um pouco assim que eu me sinto, dentro da energia e seus tecnicismos, e até mesmo da sociologia e sua crise, ao insistir que recursos não são apenas elementos da natureza ou objetos de extração, mas relações sociais e políticas.
Elaine Santos
Pós-doutora pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP
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